O projeto “Histórias do Contrabando” tem como linhas orientadoras o mapeamento e levantamento dos últimos testemunhos vivos dos protagonistas de uma das histórias ibéricas mais fascinantes e quase secretas do século XX. A passagem da linha imaginária, criada pelo Homem, onde o jogo do gato e do rato é uma constante.
“Na verdade, não se trata apenas da fronteira entre guardas e contrabandistas, mas de uma fronteira entre o ser humano e a sua circunstância, o ser humano e tudo aquilo que o rodeia. Os episódios podiam ser contados em espanhol, português ou num qualquer dialeto quiçá portunhol, em qualquer parte da linha de fronteira, terrena ou aquática de norte a sul do país. São histórias abertas cujo o destino das gentes nunca é conhecido, mas pressupõe a continua luta diária pela sobrevivência em espaços que se humanizam, se angustiam a cada dia pelos seus habitantes. Tolerantes as povoações mães solidarizam-se coniventes com aqueles que se entregam ao negócio proibido.”
|”A gíria de Quadrazais”, 2019 |
O projeto devolve-nos as últimas memórias destes salteadores. Traficantes de mercadorias e de sonhos, fugitivos dos impostos, mas também do destino de fome e pobreza. É um retrato fiel do que foram ou são ainda, as zonas raianas ibéricas. De ambos dos lados da verdade. Guardas fiscais, contrabandistas, sociólogos, escritores entre outros, que fazem parte deste elenco de recolha de um dos bens mais preciosos que estas terras podem ter. O seu património imaterial, de profunda escassez.
O projeto tem vindo a recolher em cerca de 3 anos, quase uma centena de testemunhos gravados na primeira pessoa, de norte a sul da raia ibérica, de ambos os lados da fronteira. As recolhas são feitas sobre o formato de vídeo que após o seu tratamento e análise revertem em pequenos episódios de uma série intitulada “Histórias do Contrabando”. Episódios que se querem na sua essência mais rudimentar e pura possível. Numa tentativa modesta de registar e caracterizar um povo que partilha de um estilo de vida semelhante. Onde a linha que os separa é a mesma que os une. O projeto encontra-se aberto em constante recolha e sinalização.
A curta-metragem “A gíria de Quadrazais“, realizada por Paulo Vinhas Moreira, é apresentada no canal YouTube “Espacio Fronteira”, com o apoio do FEDER e do programa Interreg Espanha-Portugal 2014-2020.
A pandemia veio revelar ainda mais a enorme importância que estes projetos têm para estes territórios e a urgência de uma rápida recolha da memória oral e do seu património intangível. Não só as memórias relacionadas com o tema do contrabando, mas para um conjunto de saberes e costumes, em que os seus fiéis depositários, são os mais afetados um pouco por toda a península ibérica. A raia não é diferente. Estarão com certeza em algum lado, pois o património não é estático nem imóvel, nem meramente material. Contém um caracter vivo e sem referência mecânica. Esta zona ibérica tem múltiplas expressões tradicionais que precisam de ser mais bem conhecidas e valorizadas nas suas diferentes manifestações e interpretações. Não “Fakelorizadas” e massificadas ao seu potencial económico do turismo estandardizado, mas respeitadas, compreendidas e inventariadas. Para a interpretação de uma sociedade e de um território que sofreu profundas alterações estruturais, devido a vários fatores que aconteceram em simultâneo. A abertura do espaço Schengen, foi apenas mais um.
“Do pão vivia o Homem e também dos ritos, ou seja, da codificação possível das leis da natureza(…) Aprendeu assim a exata dimensão da voz e descobriu nos ritos, que também eram os movimentos do sol e da lua, o espaço da sua sobrevivência. Cultivou plantas, recortou pedras, domesticou águas que o Canto abria a terra…”
|Michel Giacometti, 1981|
“A gíria de Quadrazais”
O episódio “A gíria de Quadrazais” é um dos resultados desse mesmo trabalho. Demonstrando que para além das estórias que existem sobre o contrabando, os produtos que eram comercializados, as aventuras e desventuram que eram vividas, por estes protagonistas na primeira pessoa, existe também um património imaterial de alto relevo que deve ser “preservado” com a maior brevidade e autenticidade possível.
Este episódio é gravado numa aldeia de nome Quadrazais no concelho de Sabugal, Beira Alta, onde o projeto tem vindo a colaborar com o município na sinalização, mapeamento e recolha. A gíria de Quadrazais é um dialeto usado pelos habitantes dessa aldeia de forma a conseguirem comunicar sem que mais alguém os entendesse. Faz uma análise ao fenómeno por gentes locais e preserva alguns dos termos mais utilizados pelos habitantes da aldeia. Estes, são os últimos utilizadores deste dialeto que era usado na zona raiana a fim de evitar que desconhecidos tivessem acesso à informação.
“A gíria deve ter sido mais usada, criada já foi há muitos anos, mas deve ter sido mais usada a partir do momento em que se criou a guarda fiscal. A guarda fiscal é de 1875, é do século XIX. Ora está a ver, nessa altura é que foi necessário aviva-la…”
|Franklim Costa Braga, 2018|
Nota biográfica
Paulo Vinhas Moreira, nasce em 1981 em Castelo Branco. Com laços familiares à raia da beira baixa, onde desde muito cedo se habituou a conviver com o imaginário da realidade de uma povoação que se encontra a pouco mais de uns minutos do país vizinho. Vai na volta, já se encontravam um par de pesetas para ir aos caramelos, num programa típico familiar de domingo à tarde. Desde muito cedo dedica a sua atividade académica ao estudo das artes visuais, onde se licencia e mais tarde, torna-se mestre no ensino das artes visuais. Encontra-se a frequentar a pós-graduação em património cultural imaterial na universidade lusófona. Em paralelo a fotografia e o vídeo são uma constante no seu percurso, desenvolvendo algumas exposições coletivas e individuais de fotografia de autor. Em 2016 apresenta um documentário intitulado “Contrabando” no CineEco Seia onde foi merecedor de destaque pelo júri lusofonias. Em 2016 vence o 48h film festival castelo branco, que o leva até aos Estados Unidos com o filme “Os cães da barragem” produzido em colaboração com duas companhias de teatro amador locais e voa até Seattle em representação de Portugal e Castelo Branco no Filmepalooza. Em 2018 o autor produz um pequeno documentário intitulado “O último moleiro do rio Ocresa” em colaboração com o professor Carlos Matos e levam o “Ti Diogo” até ao Brasil no Fórum Mundial da Água. Em 2018 cria a série “Histórias do contrabando” onde o primeiro episódio “A estrela do Norte” gravado em Alcoutim, Algarve, vence na categoria de melhor documentário o festival de curtas metragens Manchicurtas.
Posteriormente outros episódios têm vindo a ser submetidos a alguns festivais de cinema onde têm ganho algum destaque. Em 2020 o autor apresenta o documentário intitulado “220 metros de Guadiana” que vence o 2º lugar no Art&Tur international tourism film festival na categoria etnografia e sociedade.
IMAGEM: Paulo Vinhas Moreira