Quo vadis Europa?

Começo este texto com uma pergunta muito atual. Que aconteceu ao sentido de responsabilidade e à ética na ação política europeia?

Quando olho à volta, de norte a sul deste nosso velho continente, apercebo-me de uma acentuada perda de valores e uma deriva estratégica verdadeiramente preocupantes. Alguns, por brincadeira ou frustração, poderão afirmar que ética e responsabilidade nunca existiram entre os decisores políticos, mas isso não é verdade. Para simplificar, concentremo-nos apenas no tema do ambiente.

Durante os anos 90, enquanto jovem adulto, fui testemunha e participante direto naquilo que um colega desses tempos batizou como o “25 de abril do ambiente”. Desde o fim da década de 80 e praticamente até à entrada neste novo século, era bem patente um grande entusiasmo e otimismo à volta destas questões. A constatação de um passivo ambiental demasiado pesado, que se vinha acumulando desde a Revolução Industrial, era um sentimento partilhado pela generalidade da população europeia e parecia servir como impulso à tão necessária mudança de atitudes. Fundaram-se então centenas de associações – organizações não governamentais de ambiente, como formalmente agora se designam; os governos dos diferentes países aprovavam leis para criar e consolidar áreas protegidas; do parlamento europeu chegavam normas para se estabelecer uma rede europeia para salvaguardar ecossistemas de proteção prioritária – a conhecida Rede Natura 2000 – que cada país teria de ratificar no seu próprio território; procurava-se fortalecer o estatuto de proteção de espécies ameaçadas, como o lobo, o lince e o urso-pardo, e até se criaram projetos que visavam a recuperação das suas populações. Fora do âmbito específico da conservação da natureza, implementaram-se também medidas para uma gestão mais eficiente dos resíduos sólidos urbanos (quem não se lembra das sucessivas campanhas dos 3 Rs: reduzir, reutilizar, reciclar?) e, um pouco por todo o território do Sul da Europa, visivelmente mais atrasado neste processo, os fundos comunitários eram utilizados na construção de novas estações de tratamento de águas residuais, de forma a melhorar a qualidade da água dos rios e das zonas costeiras.

Havia, de facto, uma euforia transversal a toda a sociedade – uma espécie de desígnio ambiental europeu – que passava da população para os decisores políticos e vice-versa, já que as medidas entretanto aprovadas potenciavam também um certo espírito de militância cívica. Bons tempos!

Que é feito, então, dessa onda positiva que supostamente nos levaria a um lugar bem melhor  do que aquele onde nos encontramos? Onde estão esses políticos com sentido de  responsabilidade, à altura do nosso tempo, que pareciam querer provar aos cidadãos que governação e defesa de princípios ambientais eram, afinal, compatíveis? Não parece haver uma resposta óbvia para isto; apenas a constatação de que esse otimismo desapareceu.

Uma réstia de esperança surgiu, apesar de tudo, no rescaldo da pandemia COVID-19.

O robusto pacote financeiro aprovado pela UE assumia-se como garantia de um virar de página, uma espécie de resposta à expectativa de uma Europa ambientalmente mais sustentável, antecipada pelos cidadãos dos diferentes países durante esses duros anos de confinamento e restrições. A própria designação do Plano, “PRR”, onde pontificam as palavras Recuperação e Resiliência, tinha esse cunho marcadamente ambiental, privilegiando investimentos na adaptação dos países às alterações climáticas, incluindo a diminuição da dependência dos combustíveis fósseis ou a proteção e melhoria dos ecossistemas que podem realmente mitigar as consequências dessas alterações. Mas não… desilusão total!

Em Portugal, por exemplo, estes fundos milionários estão a servir para quase tudo, incluindo fazer o caminho contrário àquele que o próprio PRR propõe, sendo a construção e a ampliação de estradas apenas dois dos mais flagrantes casos, numa lista particularmente abundante em subversões. Qualquer pessoa com um pingo de ética acharia inaceitável a argumentação para enquadrar neste pacote financeiro projetos que, não só são executados à custa de muito petróleo como, ainda por cima, na sua forma acabada, vão incentivar e prolongar no tempo o consumo deste combustível fóssil. Uma vez mais, parece que o dinheiro derruba qualquer barreira: alguns governos estão sempre dispostos a fazer desaparecer a ética e os princípios ambientais sob um novo tapete de asfalto.

A nível de conservação da natureza, também têm surgido incongruências graves.

De repente, numa onda especialmente incitada por Ursula von der Leyen (que alheia à necessária responsabilidade institucional como presidente da Comissão Europeia, não escondeu publicamente a raiva por um dos seus póneis ter sido morto por lobos), aprovou-se a diminuição do nível de proteção do lobo e vários países começaram também a emitir licenças para a caça de outras espécies ameaçadas, como o urso-pardo e o lince. Mesmo nos Países Baixos, onde o lobo apenas reapareceu em 2015, após 150 anos de ausência, as pressões para o seu abate são enormes. A Suécia, vai ainda mais longe nesta caminhada de extermínio: em 2023 lançou a maior caçada ao lobo dos tempos modernos, ambicionando eliminar 75 indivíduos de uma população de apenas 406; em relação ao urso-pardo, no segundo dia de caça do corrente ano já tinham sido mortos 152 destes animais, quando ainda no ano passado se abateram um recorde de 722. Infelizmente, o lince também não escapa aos números absurdos desta incompreensível política. Note-se que nenhuma destas decisões tem por base critérios científicos, tendo diversos investigadores e organizações não governamentais alertado repetidamente para o perigo de inviabilidade genética destas espécies devido à redução drástica das suas populações. Paradoxalmente, estas medidas surgem em simultâneo com normas europeias que procuram estimular o restauro de ecossistemas – a renaturalização de áreas que destruímos no passado. Pelos vistos, estamos a tentar dissociar espécies animais silvestres dos habitats que as abrigam, numa negação do próprio conceito de ecossistema. Ninguém pode compreender medidas tão erráticas e contraditórias.

E isto leva-nos à “cereja em cimo do bolo”, no sentido de rota suicida que aparentemente escolhemos seguir nos últimos anos – o ex-libris das más decisões, numa Europa transfigurada, irreconhecível à luz dos seus valores fundamentais. Refiro-me à súbita e selvagem febre da mineração.

Duas fêmeas de veado olham atentamente numa encosta da serra da Culebra, junto à localidade de Calabor, província de Zamora, Espanha. Esta zona, que integra a Rede Natura 2000 e abriga a maior população de veados e de lobos da Península Ibérica, está na mira da empresa canadiana Almonty, que pretende abrir aqui uma mina a céu aberto para explorar volfrâmio e estanho.

FOTO: António Sá

Sabemos que conjuntura internacional não é favorável. A guerra na Ucrânia, toda a turbulência no Médio Oriente, a tensão comercial com a China e o desfecho das eleições americanas obrigaram a Europa a olhar subitamente para dentro, numa operação tão rápida quanto desesperada para  perceber o seu grau de auto-suficiência. O complexo Regulamento para as Matérias-Primas Críticas (Critical Raw Materials Act, em inglês), elaborado e aprovado em tempo recorde, é um exemplo disso mesmo. A crescente necessidade de minério para áreas estratégicas, como as tecnologias digitais, a transição energética, a indústria aeroespacial e o setor da defesa, motivaram a UE a desencadear uma verdadeira corrida a estas matérias-primas dentro das suas próprias fronteiras. Não haveria nada de profundamente errado nisto, não fossem as vítimas desta febre mineira – de graves impactos ambientais – os países do costume, nas geografias do costume. Os pedidos de prospeção e pesquisa, ou mesmo de exploração, sucedem-se a grande velocidade em Portugal e Espanha, mas também no Leste da Europa, apresentados pelos grandes grupos internacionais que dominam o setor da mineração, também estes provenientes dos países do costume: Canadá, Austrália, EUA, entre outros menos óbvios, como a Suécia ou a Polónia. De repente, até os dados oficiais são propositadamente desvirtuados para facilitar um jogo onde parece valer tudo, mesmo atraiçoar outros estados-membros da UE. Portugal é agora anunciado como o país europeu com maiores reservas de lítio, convertendo-se assim numa presa fácil pela debilidade da sua economia e governação ávida de dinheiro “fácil”. O Estado alemão prepara-se mesmo para investir até 270 milhões de euros numa mínio de lítio (da canadiana Savannah Resources) em Boticas, perto de Chaves. No entanto, uma busca rápida aos dados oficiais permite repor a verdade e perceber o estado decadente da União: afinal é a Alemanha, e não Portugal, o país com maiores depósitos de lítio da Europa; mais precisamente, 3,62% das reservas mundiais, logo abaixo da China e bem à frente de Portugal (com 0,26%) ou de Espanha (com 0,30%). Resumindo: a Alemanha, bem ciente do seu poder económico e da capacidade de  escrutínio da sua população, não hesita em desviar as atenções (e o financiamento) para território lusitano, que ficará, sobretudo, com o enorme passivo ambiental. Entretanto, outros projetos de exploração de cobalto, volfrâmio e estanho estão também previstos para as vizinhas províncias de Ourense – onde a sueca Eurobattery multiplica a sua atividade – e de Zamora, com o projeto Valtreixal, da canadiana Almonty.

Especialmente preocupante, é o facto de alguns destes projetos visarem até áreas classificadas, como parques naturais ou sítios Rede Natura 2000, deitando por terra décadas de esforço de conservação e os próprios princípios ambientais que sempre nortearam a UE: o Parque Natural de Montesinho e a serra da Nogueira, no Nordeste de Portugal, ou a serra da Culebra, no Noroeste zamorano, são disso um triste exemplo. Não consta que a Alemanha, a França ou a Dinamarca estejam atualmente a sacrificar os seus melhores ecossistemas para instalação de parques fotovoltaicos e eólicos e, muito menos, para estes agressivos projetos mineiros. Não sei se é prepotência dos países “fortes” ou falta de ética e auto-estima dos países “fracos” (talvez seja uma combinação), mas é uma verdade inequívoca que as estrelas desta Europa a 27 não têm todas o mesmo brilho.

(Texto e fotos) António Sá, fotógrafo.

IMAGEM: Visitantes percorrem um trilho na serra da Nogueira, em Bragança, Portugal. Esta área de grande valor natural, totalmente incluída na Rede Natura 2000, foi recentemente alvo de um pedido de prospeção e pesquisa de minério. (FOTO: António Sá)

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