A par da minha profissão de docência no domínio da Filosofia, encontrei na gestão associativa voluntária uma das maiores realizações da minha vida, atividades que iniciei em 1973 e que ainda mantenho na atualidade.
Nesta comunicação, recorrendo à minha experiência vivida nesse domínio, começarei por esclarecer o modelo de associativismo que defendo, para de seguida enaltecer a excelência da atividade associativa em termos humanos e mostrar como essa atividade é imprescindível na consolidação da sociedade civil em busca dobem comum e no reforço da democracia participativa.
Que Modelo de Associativismo?
O associativismo abrange um domínio vasto de ação e muitas vezes tem sido utilizado para servir interesses pessoais em nada condizentes com a promoção e defesa do bem comum. Nesse sentido é necessário clarificar o modelo de associativismo que de um modo geral melhor possa garantir a concretização destes ideais.
Na RIONOR defendemos um associativismo interveniente socialmente, com base na contribuição voluntária dos seus dirigentes, uma prática transparente que mostre com clareza o modo como internamente funciona e um associativismo democrático e apartidário, mas jamais apolítico.
Relativamente à transparência, de acordo com notícias vindas a lume, nomeadamente o caso da Associação Raríssimas (doenças raras), cujos dirigentes se envolveram em escândalos financeiros, parece-me que pelo menos em Portugal ainda vai ser necessário percorrer um longo e duro caminho até conseguirmos ter associações indiscutivelmente transparentes.
Nos anos 60 do século passado, havia em Trás-os-Montes cooperativas de agricultores, nomeadamente no campo vinícola. Era aí que o meu pai entregava as uvas, mas só tardiamente lhas pagavam e a muito baixo custo. Por fim deixaram mesmo de lhas pagar e os agricultores souberam que os dirigentes tinham desviado os montantes auferidos com a venda do vinho para as suas contas pessoais, contribuindo para o fim destas importantíssimas estruturas associativas nesta região.
A desonestidade que todos condenamos, muito embora em Portugal muitas vezes pareça que se aceita passivamente, foi nociva ainda mais porque matou na raiz a estrutura associativa que poderia ser um esteio no desenvolvimento rural e travaria por certo o fim abrupto a que chegaram boa parte das atividades agrícolas na região.
Quanto à dimensão democrática do associativismo, à imagem do que se passa com a organização das sociedades em geral, penso que a democracia é o modelo que melhor garante a preservação da igualdade, da justiça e da liberdade, condições essenciais para assegurar a dignidade humana. Bem entendido, a democracia só por si não garante a concretização destes ideais, pois é um sistema que implica o envolvimento de todos para melhor atingir os fins propostos e daí a grande importância da participação cívica e o envolvimento dos cidadãos nas questões públicas.
Para assegurar a gestão democrática das associações são necessárias lideranças competentes, que congreguem e acolham todos os contributos dos que participam, colocando em prática os ideais democráticos. Contudo, a manutenção das mesmas pessoas por décadas a fio nos cargos dirigentes, consequência dos baixos índices de participação associativa, promove a falta de transparência, potencia a estagnação e contribui para o desinteresse dos sócios pelas questões associativas.
Estamos a assistir a uma deriva sem igual para os valores do individualismo, mas pessoalmente recuso-me a aceitar que já não existem pessoas solidárias e muito em especial jovens.
Penso que o mundo oscila entre posições extremas e que um dia todos os seres humanos acabarão por compreender que uma sociedade mais solidária e mais fraterna se adequa melhor às necessidades de um bom viver ao longo de toda a vida.
Lutar por estes ideais implica reforçar a democracia de um país e consolidar a sociedade civil em torno do bem comum, contribuindo para a constituição duma opinião pública informada, ativa e interveniente, que não deixa os políticos entregues a si próprios, impedindo-os de enveredar por derivas como a autocrática ou a demagógica.
O Meu Percurso Associativo
De acordo com alguns especialistas e muito embora a criação de instituições centenárias como as misericórdias, o associativismo em Portugal, como o encaramos atualmente, surge com a Revolução Liberal no início do século XIX, para o qual contribuíram sem dúvida a criação de organizações como a Maçonaria, cujos ecos filantrópicos dos seus membros, sabemo-lo hoje, estão por detrás da criação de instituições como as primeiras escolas para cegos, nomeadamente o Instituto de Cegos Feliciano de Castilho em Lisboa.
Como afirmei acima, em 1973 iniciei em Lisboa as minhas atividades associativas que a Revolução dos Cravos veio potenciar de forma inimaginável, proporcionando-me uma aprendizagem sem precedentes e dando início ao repto mais desafiante da minha vida, que foi o de integrar e liderar o movimento associativo dos cegos portugueses que tomou como escopo fundamental unificar as três associações existentes em Portugal, cujo funcionamento era circunscrito quase unicamente ao bairro onde estavam sediadas, fundindo-as em 1989 numa a que chamámos ACAPO (Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal.
Em Portugal os cegos tinham como referência de unidade nacional a ONCE (Organização de Cegos de Espanha), que possuía fundos auferidos pela lotaria que lhes tinha sido concedida.
Contudo, existe uma diferença fundamental: as associações de cegos espanholas tinham sido forçadas a unir-se em 1938 pelo regime de Franco, portanto, autocraticamente, enquanto as associações portuguesas, após o fim da ditadura, se unificaram de forma democrática. Felizmente os fundos da ONCE proporcionaram o desenvolvimento cultural dos cegos espanhóis, que puderam operar uma autêntica revolução quando chegou a Democracia. Era amigo pessoal de algumas pessoas cegas que viriam a assumir responsabilidades diretivas na ONCE, o que se transformou numa ajuda fundamental para a concretização da unificação das associações portuguesas.
As três associações de cegos existentes na altura não conseguiam ter grande influência na população em geral e nenhuma influência junto dos governos, para além de não resolverem o problema fundamental de representar os cegos portugueses ao nível nacional e junto das organizações internacionais.
Durante a vigência da ditadura do Estado Novo, todos sabemos que o livre associativismo estava proibido, permitindo que as associações de cegos prosseguissem as suas atividades, mas funcionando como guetos.
Ao ler os estatutos da Associação de Cegos Luís Braille, que foi constituída em Lisboa em 1927, não podemos deixar de ficar espantadíssimos, pois parecem mais próprios de um sindicato. De facto, nesse tempo os cegos saíam dos institutos com uma formação musical muito elevada e empregavam-se em casas de diversão, bares, casas de jogo, restaurantes, lupanares, etc.
Com a entrada do Estado Novo e com a chegada da radio e da televisão, a grande maioria desses músicos ficou desempregada e restou-lhes como única possibilidade a de tocar nas ruas, enfrentando os anátemas da mendicidade. Escutei muitos relatos desses músicos de rua que costumavam ir parar aos calabouços do Governo Civil, presos e espoliados dos montantes auferidos na jornada, só sendo libertados com a chegada dos dirigentes da Associação de Cegos Luís Braille.
Para além da inestimável ajuda da ONCE, convém sublinhar, a fusão das associações de cegos de Portugal só foi possível pelo grande incentivo ao associativismo que proporcionou a Revolução dos Cravos.
Com a unificação das Associações de Cegos numa só organização, seria possível resolver problemas como o da representatividade, podendo a partir desse momento ser um interlocutor válido junto dos governos e das instituições em geral e sobretudo, podendo passar a integrar as organizações internacionais, como a União Mundial e União Europeia de Cegos. A título de exemplo, só em 1987 as associações de cegos portuguesas participaram pela primeira vez na assembleia da União Europeia de Cegos, que se realizou em Varna na Bulgária. Na qualidade de líder do movimento para a unificação coube-me a mim assegurar essa participação. Todavia, ia comigo um alto funcionário do Instituto de Reabilitação que era um organismo oficial do Governo. Tomei conhecimento nessa Assembleia que apenas Portugal participava com membros governamentais, enquanto todos os países, incluindo os de leste, eram representados naquelas organizações não governamentais pelas suas associações.
Para os que duvidam da importância do associativismo, lembro que sem essa ferramenta fundamental não teria sido possível levar tão longe as medidas de proteção das pessoas com deficiência: educação inclusiva, criação de pensões, leis de anulação das barreiras arquitectónicas, etc. etc.
Ainda para os descrentes nos benefícios que logrou o associativismo de cegos, para ilustrar a sociedade de então e realçar o caminho que desde então se percorreu no modo como a opinião pública encarava a cegueira, lembro aqui um episódio que se passou ainda nos anos 60 com um meu amigo cego, que já era licenciado em Psicologia. Entrou ele num autocarro na elegante Avenida de Roma da cidade de Lisboa e de imediato um respeitável passageiro, disfarçado de caritativa compaixão, mas destilando o mais ácido veneno da marginalização, desabafou em cima dos seus ouvidos:
– Mas porque deixam andar estas pessoas na rua e não os metem numa quinta?
Contributos da RIONOR para o Reforço da Sociedade Civil e Busca do Bem Comum
Quanto à RIONOR, ainda há quem se interrogue sobre a sua utilidade e qual deve ser o seu papel. Da minha parte tive sempre a noção da relevância do seu trabalho, como espero mostrar com clareza com os exemplos a que vou recorrer adiante.
1. Áreas Protegidas e o Novo Paradigma
No início das nossas atividades, todos acreditávamos que a criação de Parques naturais era uma iniciativa louvável e das melhores para a região. Contudo, quando promovemos debates nas aldeias, apercebemo-nos junto das populações que havia um mal-estar generalizado e uma enorme má-vontade, sobretudo contra as Administrações desses Parques que não dialogavam com os camponeses, preferindo obrigá-los a pagar pesadas multas, entre outras atitudes autocráticas. Por outro lado, multavam também em milhares de euros as Câmaras Municipais, com uma pequena nuance: estas tinham bons advogados pagos pelo erário público que conseguiam anular as multas, enquanto os camponeses tinham de as pagar, como sucedeu ao nosso sócio José Terrão que pagou três mil euros por ter limpado um curto caminho para uma sua terra.
No exercício da cidadania, convocámos Conselhos Raianos que nos permitiram equacionar os problemas em questão, consolidando a convicção de que era urgente alterar as políticas vigentes. Com grande felicidade, na sequência dos nossos debates entre os dois lados da fronteira, encontrámos especialistas, como Jaime Izquierdo Vallina, que nos ajudaram a propor um novo paradigma. As alterações climáticas vieram confirmar as conclusões a que tínhamos chegado, aprendendo mais uma vez que em nenhum campo da atividade humana se justifica a prepotência, o dogmatismo e o consequente e castrante fundamentalismo.
Por fim, aprendemos também que nenhum projeto pode sobreviver contra a vontade das populações.
Estes ensinamentos e os resultados e mudanças de políticas que originaram, são uma resposta concreta da excelência e importância dos contributos associativos para a denúncia das atitudes autocráticas e para a promoção de novas políticas. Eis portanto um exemplo concreto e eloquente da importância do trabalho realizado pelas associações e que se estas o não fizerem ninguém o fará por elas.
2. Reforço da Cooperação Transfronteiriça
Outro domínio em que a RIONOR trabalhou arduamente, foi o do incremento da cooperação transfronteiriça entre Portugal (Trás-os-Montes) e Espanha (Castilla y León), procurando compreender as razões que justificam os baixos níveis de cooperação transfronteiriça verificados nesta região. Foi precisamente esta questão que nos foi colocada em 2018 pelo Ministro Adjunto do Primeiro Ministro, Pedro Siza Vieira do Governo de Portugal, pelo Consejero de Educación, Fernando Rey, do Governo da Junta de Castilla y León e pelo Embaixador de Espanha em Portugal, apelando ao nosso trabalho como forma de ajudar a superar esses constrangimentos.
Com o trabalho realizado concluímos que os baixos níveis de cooperação transfronteiriça se deviam à não concretização de infraestruturas rodo e ferroviárias entre Trás-os-Montes e Castilla y León, que dificultam a mobilidade de bens e pessoas entre os dois lados da fronteira, contribuindo para a manutenção do histórico afastamento.
Há mais de uma década que Portugal construiu a auto-estrada A4 até à fronteira, em Quintanilha, enquanto do lado de Espanha ainda hoje não está concretizada essa ligação a Zamora. Outro projeto rodoviário é o da ligação de Bragança à Puebla de Sanabria, situação que se tornou mais premente devido à estação do comboio de alta velocidade a funcionar nesta localidade a cerca de 40 km de Bragança.
Em 2017, quando nas eleições regionais havidas nesse ano nenhum autarca falou da ferrovia, a RIONOR realizou seis Conselhos Raianos em que a via férrea foi analisada com profundidade, tendo sido aprovadas resoluções que visavam a reposição das antigas vias férreas e a ligação a Espanha, como projeto que de facto resolveria a mobilidade de bens e pessoas entre os dois lados da fronteira e representaria um forte incentivo ao desenvolvimento económico da região nas próximas décadas. Felizmente, passado alguns meses começou a ser falada a reposição das vias férreas por alguns autarcas e organismos, a própria RIONOR realizou mais Conselhos Raianos sobre este tema, mas a verdade é que as iniciativas não foram suficientes para avançar com estes dossiers no terreno.
Neste campo, constatámos que apesar dos bons exemplos vindos de Espanha e um pouco por toda a Europa, não conseguimos destruir os preconceitos dos autarcas contra a ferrovia, situação agravada pelos erros históricos que Portugal foi cometendo a partir dos primórdios da concretização destas infraestruturas.
Em 2018 realizámos dois Conselhos Raianos sobre a Educação, um em Zamora e outro em Mirandela que contaram com mais de 100 participantes e em que estiveram o Ministro português da Educação e o Consejero de Educación da Junta de Castilla y León e em que foram aprovadas resoluções no domínio educacional que a serem incrementadas, tinham potenciado a cooperação transfronteiriça de forma exponencial.
Reunimos nos Conselhos Raianos, para além dos cidadãos, dezenas de responsáveis governamentais aos níveis regionais e nacionais, constatámos que todos estavam de acordo com a análise feita e com as medidas propostas, mas a verdade é que algo de estranho sucede que ultrapassa todas estas vontades e trava a sua resolução.
Chegados a este ponto da situação, entrámos numa zona de nevoeiro que não nos deixou ver claro. Houve quem afirmasse que os fundos da UE para as zonas de fronteira foram sistematicamente desviados para outros projetos de localidades sem fronteira; enquanto outros tivessem garantido que é responsável por esta situação, sobretudo em Portugal, a tradicional política das capelinhas que faz com que determinados organismos regionais travem as próprias decisões dos governos e desviem para outras localidades os investimentos destinados às regiões de baixa densidade populacional.
Para avançar neste terreno movediço seria necessário prosseguir com mais e inovadoras iniciativas que envolvessem um número cada vez maior de cidadãos em diferentes localidades destes territórios, de forma a pressionar os responsáveis governamentais.
Como referi acima, as jornadas sobre o meio ambiente tiveram êxito, precisamente porque tivemos a adesão dos cidadãos. Conseguimos um abaixo assinado com cerca de mil assinaturas, cuja maioria era de camponeses, facto extraordinário, tendo em conta os baixos índices de literacia nestas regiões.
O Associativismo em Portugal e em Espanha
Segundo os teóricos, Portugal e Espanha, comparativamente com outros países europeus, confrontam-se com baixos índices de participação associativa, o que se reflete na fragilidade das instituições democráticas e da baixa participação cívica dos cidadãos, situação para a qual sem dúvida contribuíram as ditaduras ibéricas que se mantiveram até meados da década de 70 do século XX. Nesse sentido, parece-me útil lembrar aqui as afirmações de António Campelo Amaral, que não é parco em palavras para realçar a excelência do trabalho associativo:
“O conceito de “democracia associativa” contém implícita, por conseguinte, a ideia de que a democracia está, funcional e normativamente, dependente de uma vida associativa intensa. Nesse sentido, as associações são uma pré-condição indeclinável do funcionamento da democracia: esta revelar-se-á tanto mais forte quanto mais elevados forem os índices de participação cívica”.
AMARAL António, «Sociedade Civil e Associativismo. A arte de viver em comum», in AMARAL António, CULTUM. Excursos de Hermenêutica, Política e Religião, Editora Lab Com.IFP, 2018, pp. 276-295.
Para mostrar o nosso atraso no campo associativo, situação que é comum a todas as associações, lembro aqui as dificuldades que tivemos na RIONOR para a mobilização dos cidadãos para a adesão como associados. Mesmo os poucos que aderiram, na sua grande maioria limitam-se ao pagamento de uma quota e a maioria nem as quotas acaba por pagar. Até ao nível dos dirigentes o número de horas voluntárias dadas a estes projetos é baixíssimo, o que acarreta uma sobrecarga inimaginável para os poucos que se empenham no trabalho associativo.
Quanto à mobilização dos cidadãos para os debates dos nossos encontros a que chamámos Conselhos Raianos e Veladas Raianas, também se ressentiu a generalizada apatia dos cidadãos de um e do outro lado da fronteira. Contudo, o número de participantes foi crescendo até ultrapassar a centena, número que desceu acentuadamente com a pandemia, situação da qual ainda não recuperámos.
Conclusão
Através da apresentação dos resultados a que chegámos com as atividades das Associações de Cegos e da RIONOR, penso ter mostrado a relevância do trabalho associativo no equacionamento e resolução dos problemas com que se defrontam os diferentes setores sociais.
Para alcançar esses objetivos defendo um associativismo interveniente, transparente e democrático, assente na prestação voluntária dos seus membros que opera no âmbito da sociedade civil em busca do bem comum e através do apelo dos cidadãos à participação cívica, procura equacionar os grandes problemas que afetam as populações e encontrar soluções para a sua resolução.
De acordo com a minha experiência, se quisermos construir sociedades mais justas e mais fraternas, na senda da entreajuda que garantia o comunitarismo que vigorou durante séculos nestes territórios, penso que hoje em dia a alternativa que nos resta é a de incentivar e dignificar o trabalho voluntário para fortificar e replicar o trabalho associativo. Pessoalmente tem sido essa a minha aposta e tenho sido recompensado de forma inimaginável, mantendo a firme convicção que o possível pagamento dessas horas voluntárias jamais me daria tão profundas e duradouras compensações pessoais.
Muito obrigado.
Francisco Alves
Presidente da RIONOR (Rede Ibérica Ocidental para uma Nova Ordenação Raiana)
IMAGEM: Rio de Onor, aldeia comunitária. (FOTO: viajesymapas.com)